<p><strong>José Tadeu Arantes | Agência FAPESP</strong> – Mesmo sem conter nenhuma substância ilícita, o líquido dos cigarros eletrônicos pode causar sérios danos à saúde. Em muitos casos, a concentração de nicotina nesses produtos é várias vezes superior à encontrada nos cigarros convencionais – o que favorece a rápida instalação da dependência. Além disso, como os cigarros eletrônicos são proibidos no Brasil – <a href=”https://anvisalegis.datalegis.net/action/ActionDatalegis.php?acao=abrirTextoAto&link=S&tipo=RDC&numeroAto=00000855&seqAto=000&valorAno=2024&orgao=RDC/DC/ANVISA/MS&cod_modulo=310&cod_menu=9431″ target=”_blank”><strong>proibição</strong></a> que engloba a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar, conforme resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – os produtos oferecidos aos usuários não passam por nenhum controle de qualidade.</p>
<p>“Alguns desses líquidos chegam a ter 100 vezes mais nicotina do que um cigarro comum, cujo limite máximo legal é de 1 miligrama de nicotina por cigarro. Além disso, já foram encontrados nos líquidos aditivos como o acetato de vitamina E, que causou mortes e lesões pulmonares permanentes em usuários nos Estados Unidos”, afirma Luciano Arantes, pesquisador e membro do comitê gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Substâncias Psicoativas (INCT-SP).</p>
<p>O cenário se torna ainda mais preocupante quando se considera o uso clandestino de canabinoides sintéticos nesses dispositivos. Essas substâncias são criadas em laboratório para imitar os efeitos do tetrahidrocanabinol (THC), o principal componente psicoativo encontrado na <em>Cannabis sativa</em> (maconha). Mas os canabinoides sintéticos são muito mais potentes e podem desencadear efeitos neurológicos como convulsões, surtos psicóticos e até mortes por overdose.</p>
<p>“O que estamos vendo é uma corrida química. Grupos clandestinos produzem drogas com estruturas cada vez mais potentes, exigindo doses mínimas para obter o efeito desejado. Como não há qualquer rotulagem ou aviso, o usuário consome sem saber o que está ingerindo”, alerta Arantes.</p>
<p>Para enfrentar o problema, pesquisadores brasileiros, com parceria internacional, desenvolveram um sensor portátil capaz de detectar com precisão canabinoides sintéticos em líquidos de cigarro eletrônico e em fluidos biológicos, como a saliva. O dispositivo foi descrito em artigo <a href=”https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0039914025010641?via%3Dihub” target=”_blank”><strong>publicado</strong></a> na revista <em>Talanta</em>.</p>
<p>“Nós desenvolvemos um método eletroquímico que identifica com alta seletividade e sensibilidade diferentes moléculas de canabinoides sintéticos. A análise pode ser feita em qualquer lugar, com uma pequena amostra, e o sensor responde por meio de um sinal eletroquímico característico”, descreve Larissa Magalhães de Almeida Melo, primeira autora do estudo, juntamente com a aluna Cecília Barroso.</p>
<p>O dispositivo utiliza um eletrodo de diamante dopado com boro, fabricado em colaboração com um grupo da Universidade de Tecnologia de Bratislava, na Eslováquia. “É um sistema simples: o eletrodo é conectado a um potenciostato portátil, que pode ser acoplado a um celular por sua porta USB-C ou mesmo por conexão sem fio via Bluetooth. A resposta é um gráfico de potencial por corrente, com picos específicos que identificam e quantificam as substâncias presentes”, explica Melo.</p>
<p>“Esse sensor apresenta uma grande inovação no campo dos dispositivos portáteis, pois alia a portabilidade dos sensores impressos com a alta estabilidade dos materiais de diamante dopado com boro, podendo ser reutilizados inúmeras vezes”, sublinha Wallans Torres Pio dos Santos, professor da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, em Minas Gerais, e coordenador do estudo.</p>
<p>Testado com as substâncias AB-Chminaca e MDMB-4en-Pinaca, dois dos canabinoides sintéticos mais comuns e perigosos, o sensor demonstrou capacidade de detectar concentrações muito baixas, da ordem de 0,2 µM, mesmo na presença de altos teores de nicotina e outras interferências. Em química, o µM, chamado de micromolar, é uma unidade de medida da concentração de uma substância em solução. O valor de 1 µM é de um milionésimo de mol por litro.</p>
<p>“O grande diferencial do nosso dispositivo está na seletividade. Mesmo com a complexidade das amostras, conseguimos focar apenas nas substâncias de interesse. É como entrar num ambiente escuro e iluminar só o ponto que queremos observar”, compara Santos.</p>
<p>Além da aplicação como ferramenta de triagem pela polícia científica, o aparato poderá ser usado no campo da saúde pública para o pronto atendimento de usuários em situação de overdose ou acometidos por outras complicações – e também em ações preventivas de redução de danos. Para este último objetivo, o grupo de pesquisadores mantém parceria com o “<a href=”https://toxicologia-unicamp.com.br/sistema/toxico/” target=”_blank”><strong>Projeto BACO – A Toxicologia & as Análises Toxicológicas como fontes de informação para políticas públicas sobre drogas</strong></a>”. “O objetivo desse projeto é avaliar o uso de novas substâncias psicoativas em festas e festivais, por meio da análise de amostras de fluido oral (saliva). Nossa parceria com os pesquisadores do BACO busca estender o objetivo inicial do projeto para permitir não somente a análise da saliva, mas também uma triagem imediata em substâncias que os frequentadores pretendam consumir”, explica Arantes.</p>
<p>“Esses canabinoides sintéticos estão em constante transformação. Novas variantes surgem o tempo todo e muitas delas são extremamente potentes e perigosas. Nosso objetivo é desenvolver tecnologias que possam ser levadas a campo. Queremos que o usuário saiba o que está consumindo e tenha condições de tomar uma decisão informada. Isso pode evitar intoxicações graves e até salvar vidas”, ressalta Melo.</p>
<p>“Nossos levantamentos mostram que 63% dos usuários não sabem o que estão consumindo. Muitos acham que estão usando uma droga conhecida, mas na verdade podem estar utilizando uma substância com potência muito maior. Ao identificar a substância no local, o sensor dá ao usuário a chance de tomar uma decisão consciente sobre o uso. Isso, por si só, já reduz riscos e salva vidas”, aponta Santos.</p>
<p style=”text-align:center”><img alt=”” src=”https://agencia.fapesp.br/files/upload/55659/grafico-jta.jpg” style=”height:612px; width:800px” /><br />
<span style=”font-size:10px”>Gráfico que permite identificar e quantificar a substância-alvo presente no cigarro eletrônico (<em>figura: Larissa Melo/INCT-SP</em>)</span></p>
<p>A capacidade de adaptação do método é outro ponto forte destacado pelos pesquisadores. “Já desenvolvemos sensores para outras classes de substâncias, como LSD e seus análogos sintéticos, catinonas e feniletilaminas. Estamos trabalhando também na incorporação de reagentes colorimétricos aos sensores, para facilitar a interpretação visual dos resultados”, detalha Arantes.</p>
<p>A FAPESP <a href=”https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/114050/violencia-facilitada-por-drogas-desenvolvimento-de-metodos-analiticos-para-a-identificacao-de-drogas/” target=”_blank”><strong>apoia</strong></a> o projeto por meio de auxílio à pesquisa concedido a <a href=”https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/104497/jose-luiz-da-costa/” target=”_blank”><strong>José Luiz da Costa</strong></a>, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em toxicologia e parceiro do grupo. Parte das análises foi feita em colaboração com o laboratório dele, utilizando amostras reais de saliva coletadas em ambientes de uso.</p>
<p>“As amostras de saliva utilizadas no estudo foram coletadas no âmbito do Projeto BACO, desenvolvido na Unicamp em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública [MJSP]. Esse projeto, por sua vez, é um desdobramento da pesquisa “<a href=”https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/100747/a-toxicologia-das-novas-substancias-psicoativas-nsp-epidemiologia-do-consumo-atraves-da-analise-de-a/” target=”_blank”><strong>A toxicologia das novas substâncias psicoativas (NSP): epidemiologia do consumo através da análise de amostras de cabelo e fluido oral</strong></a>”, também apoiada pela FAPESP, na qual realizamos pela primeira vez no Brasil um levantamento epidemiológico sobre NSP em festas e festivais. A partir dos resultados dessa pesquisa, o MJSP decidiu apoiar e ampliar o estudo, permitindo coletas de amostras em número muito maior, de 500 amostras no projeto inicial para 2.500 no atual. Isso nos permitiu novas parcerias, incluindo esta, com o grupo do professor Wallans”, conta Costa.</p>
<p>“O objetivo é levar a ciência para onde ela pode causar impacto direto. Peritos, médicos e profissionais de saúde precisam de ferramentas acessíveis, rápidas e confiáveis para enfrentar os desafios impostos pelas novas drogas. O que propomos é uma solução prática, portátil e escalável”, resume Arantes.</p>
<p>O artigo <em>A novel electrochemical method for detecting synthetic cannabinoids in e-cigarette and biological samples using a lab-made electrode</em> pode ser lido em: <a href=”https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0039914025010641″ target=”_blank”><strong>www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0039914025010641</strong></a>.</p>
<p><em>Texto atualizado em 26/08.</em></p>